Do Pente Quente à Nanotecnologia: A Conturbada e Fascinante História do Alisamento Capilar

O Desejo Milenar pelo Liso e a Busca por Controle
A história do cabelo humano é intrinsecamente ligada à busca por identidade, beleza e, muitas vezes, controle sobre a própria natureza. Entre as diversas transformações capilares que marcaram épocas e culturas, o alisamento ocupa um lugar de destaque, carregado de significados sociais, raciais e tecnológicos. O desejo por fios lisos, seja por questões estéticas, praticidade ou adaptação a padrões dominantes, impulsionou uma jornada de invenções, descobertas acidentais e controvérsias que se estende por mais de um século. Desde os perigosos métodos térmicos do início do século XX até as sofisticadas fórmulas químicas e nanotecnológicas atuais, a história do alisamento capilar é um espelho das complexas relações humanas com a aparência, a ciência e a própria identidade. Neste artigo, desvendaremos essa trajetória, explorando as motivações, os pioneiros, as inovações e os debates que cercam a busca incessante pelo cabelo liso, revelando como essa prática moldou não apenas fios, mas também percepções e mercados.
Os Primeiros Alisamentos: Calor, Pomadas e a Necessidade de Adaptação
A virada do século XIX para o XX foi um período de intensas transformações sociais e culturais, especialmente para as comunidades afrodescendentes nas Américas, que buscavam se inserir em sociedades muitas vezes hostis e racialmente segregadas. Nesse contexto, a textura natural do cabelo crespo tornou-se um marcador racial e, para muitos, um obstáculo à aceitação social e profissional. Foi nesse cenário que surgiram as primeiras tentativas de modificar temporariamente a estrutura dos fios, buscando um visual mais alinhado aos padrões eurocêntricos de beleza.
Uma figura central nesse processo foi Madam C. J. Walker (nascida Sarah Breedlove). Enfrentando ela mesma problemas capilares, Walker não apenas desenvolveu uma linha de produtos específicos para cabelos afro-étnicos por volta de 1900, como também popularizou, a partir de 1905, o uso do pente quente (hot comb) [2, 5]. Este método, que ficou conhecido como “Método Walker” ou hair pressing, consistia em aquecer um pente de metal (geralmente no fogão) e passá-lo pelos cabelos previamente tratados com uma pomada à base de petrolato e enxofre. O calor intenso, combinado com a pomada, conseguia relaxar temporariamente as ondas e cachos, conferindo aos fios um aspecto mais liso, brilhante e maleável [2]. Embora eficaz para a época, o método era trabalhoso, temporário (o cabelo revertia ao estado natural com a umidade) e arriscado, com frequentes queimaduras no couro cabeludo e danos aos fios pelo calor excessivo.
Quase simultaneamente, outro inventor afro-americano, Garrett Augustus Morgan, faria uma descoberta acidental que mudaria para sempre o panorama do alisamento. Em 1912, enquanto trabalhava em sua alfaiataria buscando uma solução para evitar que as agulhas das máquinas de costura superaquecessem e queimassem os tecidos, Morgan desenvolveu um líquido químico [1, 3]. Ao notar que esse líquido alisava as fibras de um tecido de lã onde havia pingado, ele decidiu testá-lo, primeiro nos pelos do cachorro de um vizinho e, depois, em seu próprio cabelo. O resultado foi um alisamento químico eficaz. Percebendo o potencial comercial de sua descoberta, Morgan fundou a G. A. Morgan Hair Refining Company e começou a vender o primeiro creme alisante químico da história [1, 3]. Sua publicidade, no entanto, refletia o racismo estrutural da época, prometendo “melhorar” a aparência e “tratar” o cabelo crespo, chegando a se passar por indígena para vender seus produtos a clientes brancos [3]. Apesar das controvérsias éticas ligadas ao marketing e às pressões sociais da época, a invenção de Morgan representou o nascimento do alisamento químico.
A Era dos Métodos Térmicos e Químicos Agressivos
As décadas seguintes viram a popularização e a evolução, ainda que lenta e perigosa, dos métodos de alisamento. O pente quente continuou sendo amplamente utilizado, e instrumentos similares surgiram, como o “Cabelisador” em 1930, uma haste de metal aquecida em brasa ou no fogão, que modificava a textura capilar, mas sem um alisamento completo e com alto risco de danos [1, 3]. No Brasil, o pente quente chegou com força na década de 1940 [1, 3].
Paralelamente, a indústria química começava a explorar o potencial dos alisantes. Na década de 1950, aproveitando o desenvolvimento de produtos químicos mais potentes, surgiu o primeiro alisante comercializado em larga escala à base de Soda Cáustica (Hidróxido de Sódio) [1, 3]. Adaptado pela empresa Relaxer (cujo nome viria a batizar a categoria de “relaxamentos”), esse produto oferecia um alisamento químico mais duradouro que os métodos térmicos. Rapidamente ganhou popularidade, especialmente nos Estados Unidos, e chegou ao Brasil na mesma década [3]. No entanto, a eficácia vinha a um custo altíssimo: o hidróxido de sódio é extremamente alcalino e agressivo, causando danos severos à estrutura capilar, quebra, ressecamento e, em muitos casos, irritação, queimaduras no couro cabeludo e até alopecia (queda permanente de cabelo) [1, 2].
No final da década de 1960, em resposta às crescentes reclamações sobre os danos causados pelos hidróxidos, a Relaxer lançou o Lye Relaxer, à base de Hidróxido de Potássio, mas a agressividade continuava sendo um problema [3]. A década de 1970, com a explosão do movimento Black Power e a celebração do cabelo natural, representou um período de menor procura por alisamentos, mas a indústria não parou [1, 3].
O Tioglicolato e a Busca por Alternativas
A década de 1980 trouxe uma nova molécula para o arsenal dos alisantes: o Tioglicolato de Amônio [1, 3]. Curiosamente, essa substância surgiu inicialmente com o propósito oposto: criar cachos em cabelos lisos, no procedimento conhecido como “Permanente”, que se tornou febre na época, imortalizado por ícones como Madonna. O processo envolvia a aplicação do tioglicolato para quebrar as pontes de dissulfeto do cabelo (responsáveis pela sua forma) e o uso de bigudis (rolos pequenos) para moldar os cachos [1, 3].
No entanto, logo se percebeu que a mesma química poderia ser usada para alisar. Ao invés de enrolar o cabelo nos bigudis, os fios eram esticados durante o tempo de ação do produto. O Tioglicolato de Amônio, embora ainda um produto químico forte, era considerado menos agressivo que os hidróxidos, abrindo caminho para técnicas de alisamento mais suaves. Foi nesse período que surgiram também a “Touca de Gesso” (uma mistura de farinha com tioglicolato) e os Henês, produtos que combinavam alisamento com coloração escura [1, 3]. O termo “Relaxamento” consolidou-se para descrever esses processos que alisavam sem a extrema agressividade dos primeiros produtos à base de soda cáustica.
O final do século XX viu a busca pelo liso “chapado” ganhar força. O cabeleireiro japonês Satoru Nagata desenvolveu o “Alisamento Japonês” ou “Escova Definitiva”, aprimorando técnicas existentes com o uso de Tioglicolato de Amônio e um processo meticuloso de aplicação de chapinha em altas temperaturas, mecha por mecha [1, 3]. O resultado era um liso duradouro e resistente à umidade, que virou febre entre celebridades e consumidoras. Contudo, a técnica era demorada, cara e extremamente danosa, pois combinava a química forte do tioglicolato com o calor intenso e repetitivo da chapinha, levando à quebra e sensibilização extrema dos fios, especialmente nos retoques de raiz [1, 3].
A Febre do Formol e a Guerra da ANVISA
O início dos anos 2000 no Brasil foi marcado por uma verdadeira revolução (e posterior polêmica) no mundo dos alisamentos: a chegada da “Escova Progressiva” à base de Formol (Formaldeído) [1, 3]. Surgida inicialmente nos subúrbios do Rio de Janeiro e rapidamente disseminada por todo o país, essa técnica prometia o impossível: alisar qualquer tipo de cabelo, inclusive os mais resistentes, deixando-os brilhantes, macios e com aspecto tratado, por até três meses. O sucesso foi estrondoso e instantâneo.
O mecanismo de ação do formol no alisamento difere dos relaxamentos tradicionais. Em vez de quebrar quimicamente as pontes de dissulfeto, o formol, quando aquecido pela chapinha, forma uma rede rígida de polímeros (plástico) ao redor e dentro do fio, impermeabilizando-o e forçando-o a assumir um formato liso. O brilho intenso vinha dessa “capa” formada sobre a cutícula capilar.
Entretanto, a euforia durou pouco. Logo começaram a surgir relatos sobre os graves riscos à saúde associados ao uso do formol em altas concentrações. O formaldeído é uma substância comprovadamente cancerígena pela Organização Mundial da Saúde (OMS), além de causar irritação severa nos olhos, pele e vias respiratórias, dores de cabeça, falta de ar e, em casos extremos, edema pulmonar e até morte [3]. Os riscos não se limitavam aos clientes, mas afetavam principalmente os profissionais cabeleireiros, expostos diariamente aos vapores tóxicos liberados durante o procedimento com a chapinha.
Diante das evidências científicas e das denúncias, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) iniciou uma batalha contra o uso indiscriminado do formol. Em 2009, a agência proibiu formalmente o uso de formaldeído em concentrações alisantes em produtos cosméticos, limitando sua presença a no máximo 0,2%, quantidade considerada segura apenas para atuar como conservante da fórmula, mas insuficiente para promover qualquer efeito alisante [1, 3]. A medida gerou grande impacto no mercado, mas muitos salões continuaram a usar o produto ilegalmente ou a adicionar formol a produtos que se diziam “sem formol”.
A Era Pós-Formol: Em Busca de Alternativas Seguras e Eficazes
A proibição do formol impulsionou a indústria cosmética a buscar alternativas mais seguras e regulamentadas para atender à contínua demanda por cabelos lisos. Uma das primeiras substâncias a surgir como substituta foi o Ácido Glioxílico. No entanto, em 2014, estudos levantaram preocupações de que este ácido, quando submetido às altas temperaturas da chapinha, também poderia liberar formaldeído, levando a novas regulamentações e restrições [3].
Atualmente, o mercado de alisamentos “sem formol” ou “orgânicos” (termo muitas vezes usado mais como apelo de marketing do que por uma composição estritamente orgânica) baseia-se principalmente em duas abordagens:
- Alisamentos Ácidos: Utilizam outros tipos de ácidos orgânicos considerados mais seguros e permitidos pela ANVISA, que agem modificando temporariamente as pontes de hidrogênio e salinas do cabelo, e realinhando as cutículas com o calor da chapinha. O efeito é progressivo e geralmente menos duradouro que os alisamentos alcalinos.
- Alisamentos Alcalinos Regulamentados: Retorno ou aprimoramento do uso de ativos alcalinos já conhecidos e permitidos pela ANVISA, como o Ácido Tioglicólico e seus sais (Tioglicolato de Amônio, Tioglicolato de Etanolamina), os Hidróxidos (de Sódio, Cálcio, Lítio, Potássio – usados com mais cautela e em concentrações controladas) e o Carbonato de Guanidina (formado pela mistura de Hidróxido de Cálcio e Carbonato de Guanidina no momento do uso, considerado um “no-lye relaxer”, menos agressivo que o hidróxido de sódio puro) [1, 3].
A tendência atual é combinar esses ativos alisantes permitidos com ingredientes tratantes, como óleos vegetais, extratos de plantas, aminoácidos e proteínas, buscando não apenas alisar, mas também minimizar os danos e melhorar a saúde geral dos fios. A tecnologia também avança com formulações em passo único, que reduzem o tempo de aplicação, e produtos com menor odor e menor potencial de irritação [1].
Conclusão: Alisamento, Identidade e o Futuro dos Fios
A história do alisamento capilar é uma narrativa complexa, marcada por inovação, pressões sociais, riscos à saúde e a busca incessante por controle sobre a aparência. Desde as perigosas técnicas térmicas e químicas do passado até as fórmulas mais seguras e tecnológicas de hoje, a jornada reflete a evolução da ciência cosmética e as mudanças nas percepções sobre beleza e identidade. A proibição do formol foi um marco fundamental, forçando a indústria a buscar caminhos mais responsáveis.
Hoje, vivemos um momento de maior diversidade e aceitação das texturas naturais, mas a demanda por alisamentos persiste, agora com um foco crescente na segurança, na saúde capilar e em resultados mais naturais. O futuro do alisamento provavelmente reside na personalização, com produtos adaptados às necessidades específicas de cada tipo de cabelo, e na contínua busca por tecnologias que permitam modificar a forma dos fios de maneira eficaz, duradoura e, acima de tudo, segura para consumidores e profissionais. A história continua a ser escrita, fio a fio.
Referências:
[1] Le Prö Cosmetics. História do alisamento capilar. Disponível em: https://leprocosmeticos.com.br/blog/historia-do-alisamento-capilar/
[2] PICON, Francini C. et al. Alisantes Capilares: História e Perspectivas (Revisão). Cosmetoguia, 17 abr. 2020. Disponível em: https://cosmetoguia.com.br/article/read/area/IND/id/189/
[3] BRITO, Fabi. História e Evolução do alisamento químico capilar. S.O.S Srta Brito, 15 mar. 2016. Disponível em: https://sossrtabrito.wordpress.com/2016/03/15/historia-e-evolucao-do-alisamento-quimico-capilar/
[5] ICosmetologia. A ciência por trás do alisamento capilar. Disponível em: https://icosmetologia.com.br/blog/a-ciencia-por-tras-do-alisamento-capilar Outras fontes consultadas durante a pesquisa foram incorporadas ao texto de forma indireta.